As mulheres que desbravam as estradas do Brasil e quebram barreiras de gêneros

Enquanto conduz um caminhão-tanque com potência de 460 cavalos, 19m de comprimento e carga de 35 toneladas de óleo vegetal, Sandra Sasinski, 39 anos, cita Simone de Beauvoir. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, diz, entre uma ultrapassagem e outra. Ela cumpre a rota de 1.400 quilômetros de Luziânia (GO) a Conceição da Feira (BA).

A matéria continua após a publicidade A paranaense (foto abaixo) toma emprestadas as palavras da filósofa francesa e ícone feminista para explicar como enfrentou machismo, ameaças de agressão, tragédias pessoais, medo de assalto, violência física e se estabeleceu como caminhoneira há 12 anos. Caminhão está sempre limpo e com manutenção em dia. Veículo é a casa do motorista
Foto: Igo Estrela/Metrópoles
Do alto de seus 1,60m, Sandra ostenta valentia. Sozinha, percorre 11.200 quilômetros a cada mês pelas rodovias do Brasil, transportando produtos que movimentam a economia nacional. Assim como ela, Andréia Damasceno, 33 anos, também vive na estrada. Percorre o Sudeste carregando 45 toneladas de ferro-gusa, carvão e cal. Amarra lona, arruma caçamba, suja-se toda, toma banho em posto de gasolina, dorme dentro do caminhão. Ao mesmo tempo, escolhe decoração cor-de-rosa para o seu cantinho na boleia e aproveita as folgas para conhecer o país. A mineira (foto abaixo) só entrou no ramo, passando por cima de todos os medos e preconceitos, porque viu, nas páginas de uma revista, o perfil da caminhoneira Nahyra Schwanke. Hoje com 88 anos, ela foi uma das primeiras brasileiras a dirigir caminhão profissionalmente. Com 1,58m de altura e cabelos compridos, a caminhoneira chama a atenção ao desembarcar da cabine de sua Scania, que mede 3,61 metros
Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Sandra e Andréia representam um universo crescente: o de mulheres que não se intimidam com a dureza dessa profissão cercada por estereótipos, e assumem o volante de veículos pesados. É amor, amor pela estrada. A vida nas rodovias, no comando de grandes máquinas, representa a liberdade de acordar em uma cidade e dormir em outra e as possibilidades de conhecer gente de todo jeito e de aprender, em primeira mão, como funciona o país, apesar da solidão e dos contratempos pelo caminho.

No Brasil, são 182.376 cidadãs habilitadas a dirigir caminhões, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Elas correspondem a 6,5% do total de quase 3 milhões de profissionais com carteiras das modalidades requeridas para esse tipo de condução.

Quando a categoria parou o país para reivindicar, entre outras demandas, a redução do preço do óleo diesel, em maio de 2018, não havia rostos femininos nas lideranças do movimento. Mas as caminhoneiras estavam ali: organizando protestos, administrando grupos de WhatsApp e demonstrando apoio nas ruas e redes sociais. São parte, cada vez maior, de uma massa de trabalhadores essenciais ao funcionamento do Brasil. Mapa O Metrópoles pegou carona na boleia de dois veículos conduzidos por caminhoneiras. A equipe de reportagem foi de Brasília à Bahia e desbravou Minas Gerais. Percorreu 2 mil quilômetros para revelar perigos, desafios e alegrias encontrados por essas profissionais em suas viagens. No trajeto, uma certeza: o cotidiano das caminhoneiras é marcado pela superação. Quem decide levar a vida na estrada precisa de força física para dar conta do dia a dia, tirar e colocar lonas nas carrocerias e manobrar máquinas enormes. Também desenvolve uma percepção aguçada para identificar os problemas mecânicos de seus veículos e as “armadilhas” na pista.

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[gallery type="slideshow" size="full" ids="17854,17855,17856,17857,17858,17859,17860,17861,17862,17863,17864,17865,17866,17867,17868"] Para as mulheres dessa profissão, contudo, há uma exigência a mais. Elas aprendem a calcular as paradas no trajeto, sempre preocupadas com a segurança. Muitas estiveram sob a mira de armas durante roubos de carga e criaram estratégias próprias na tentativa de se protegerem de assédio e violência sexual. Na visão dos Caminhoneiros “Há aspectos como uso da força física; desafio em conciliar a vida dentro e fora do caminhão; conflitos na relação conjugal decorrentes da profissão; discriminação sexual e necessidade de reconhecimento no trabalho”, descreve a pesquisadora Luna Gonçalves da Silva, autora da tese de doutorado Mulheres motoristas de caminhão: realidades, estereótipos e desafios, da Universidade de São Paulo (USP).
“Além de todas as pressões que independem de gênero, elas, por serem mulheres ao volante, precisam provar a todo momento que são capazes.”Luna Gonçalves da Silva, doutora em ciências
Durante quatro anos de pesquisa, Luna recebeu relatos de caminhoneiras sobre os desafios do dia a dia. Entre as principais questões detalhadas, está a falta de infraestrutura para as trabalhadoras em empresas e pontos de parada nas rodovias brasileiras, bem como uma lista de problemas de saúde decorrentes da atividade laboral.

“A inserção das mulheres no transporte rodoviário de cargas desafia empresas e a infraestrutura existente nas rodovias do país a acompanharem as transformações sociais no mundo do trabalho, incluindo as demandas de um novo perfil de trabalhadoras”, diz Luna Gonçalves.

[gallery type="slideshow" size="full" ids="17849,17850,17851,17852,17853,17854,17855"] “Os impactos do trabalho são dores lombares e na coluna; problemas relacionados ao sono; necessidade de recorrer ao consumo de drogas, como anfetaminas e cocaína, para se manterem acordadas; estresse; infecção urinária e uso ininterrupto de anticoncepcionais”, descreve a pesquisadora da USP em sua tese de doutorado. Conforme ressalta a especialista, a entrada de mulheres em “atividades masculinas” ameaça a predominância de homens em determinados segmentos do mercado de trabalho. Derruba, ainda, pretensões e capacidades ditas como exclusiva deles, tais como a força física. “Percebidas como intrusas em território masculino, as mulheres são confrontadas com diversas formas de perseguição, podendo chegar à violência física, além de serem constantemente marginalizadas”, detalha Luna. Na cultura da estrada, todos ganham um codinome, o QRA. O apelido é usado, por exemplo, em conversas de rádio. Entre os colegas de trabalho, as mulheres caminhoneiras são chamadas de “cristal”, mas suas características em nada remetem à fragilidade desse material. Durante muito tempo nesse meio, o gênero feminino só tinha lugar nas revistas adultas carregadas na boleia. Quando muito, mulheres estavam no assento do passageiro, fazendo companhia a namorados ou maridos. Aos poucos, elas conquistam espaço e protagonismo no setor.

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